A escuridão tomava conta da paisagem. A noite estava presente exercendo o que fazia de melhor, camuflando o desconhecido. Somente a luz da tocha iluminava o caminho de Gullian, pois as escuras nuvens não permitiam a passagem da luz da Lua, tornando o cenário perturbador. O silêncio era quebrado pelo cavalgar de Faísca, fazendo com que o valente guerreiro ficasse um pouco apreensivo.
Gullian sabia da movimentação de orcs na região. Dessa forma, decidiu ir até Higuro sozinho, para não deixar a vila mais frágil do que estaria durante sua ausência. Orcs batedores haviam atacado uma das vilas de Higuro havia algumas semanas, e, para Gullian, uma nova tentativa poderia ser proveitosa para os inimigos em uma noite escura como aquela.
Um esquema para defender a vila havia sido armado. As torres de vigilância estavam repletas de arqueiros e, às costas de cada torre, catapultas estavam prontas para atirar bolas de fogo. Todos os guerreiros estavam atentos, e deveriam se revezar para manter o grupo de cada torre completo. Caso explosões fossem ouvidas, os que estivessem descansando deveriam ir para a batalha.
O castelo não deveria estar longe, mais alguns minutos seriam suficientes para avistá-lo.
À sua frente, Gullian viu a ponte que teria de atravessar. Era longa e estreita, permitia a passagem de somente um cavalo por vez. Construída de madeira e cipó, não parecia muito resistente, dando a impressão de que cederia a qualquer instante.
Abaixo dela não havia um rio, mas sim um abismo negro e profundo.
Subitamente o ar ficou gelado, os ventos que escapavam da enorme fenda tinham uma temperatura bastante baixa. O guerreiro aproximou-se da ponte. Mal podia enxergar do outro lado. Começou a cavalgar sobre ela vagarosamente. As madeiras rangiam, e o vento soprava forte, tão intenso que quase apagou a tocha que Gullian segurava. Quando estava no meio da ponte, Gullian parou.
Percebeu algo se mexendo na parede rochosa à sua frente, logo abaixo da ponte. Algo estava subindo. Aguardando um pouco, Gullian pôde perceber. Era um grupo de demônios das profundezas, pôde contar doze no total.
Essas criaturas, de pele negra e dura, camuflam-se no escuro do abismo por não suportarem a luz do Sol e, por isso, somente à noite sobem para procurar comida. E, para azar de Gullian, uma das opções de cardápio dessas criaturas é a carne humana. Não chegam a atingir a altura de um humano adulto, porém são extremamente rápidos. Caçam sempre em grupo e dificilmente perdem sua presa. Os olhos vermelhos e selvagens já haviam avistado a tocha que Gullian segurava.
O guerreiro estava encrencado. Não havia espaço na ponte para virar o cavalo e voltar, e qualquer movimento brusco poderia ser fatal, pois as ferraduras escorregariam facilmente sobre a madeira. Gullian não escaparia enquanto estivesse sobre a ponte, precisava sair dela.
As criaturas subiram rapidamente e foram, decididas, na direção da primeira presa daquela noite.
Sem entrar em pânico, Gullian lembrou-se de um truque que tentava ensinar à Faísca havia um bom tempo, entretanto, o belo animal nunca o executara com perfeição, mas tentar era a única saída. Começou a assobiar, alto e constantemente. O cavalo branco entendeu o que o seu dono queria e começou a andar de costas.
Faísca andava devagar, parecia compreender que um passo precipitado custaria a sua vida.
O fato era que os demônios se aproximavam rapidamente, arrastavam-se sobre a ponte formando uma fila. Gullian olhou para trás, não sairia a tempo da ponte e faltava pouco para que as criaturas alcançassem Faísca.
De repente, quando uma das criaturas ameaçou saltar sobre o cavalo, este, sentindo-se desprotegido, fez o movimento arriscado de equilibrar-se nas pernas traseiras ao relinchar, e no momento em que desceu, utilizou seu peso para causar um movimento brusco na ponte.
Quatro das doze criaturas caíram no vazio, as outras se seguraram como puderam. E, enquanto se recompunham, Faísca ganhou tempo para sair da estreita ponte.
Gullian virou o cavalo e partiu a toda velocidade em direção à vila. Em um primeiro momento, acreditou que seu veloz cavalo deixaria os oito demônios para trás, contudo, os estridentes guinchos das criaturas podiam ser ouvidos cada vez mais próximos em seu encalço, ocultos pelo breu da noite.
Eram rápidas. Gullian percebeu que, em breve, as criaturas alcançariam as pernas de Faísca, e um tombo naquela velocidade poderia ser fatal.
Com uma parada abrupta e com movimentos rápidos e precisos, Gullian desceu de Faísca, espetou a tocha no chão e retirou a espada das costas. Estava preparado para enfrentá-las.
O silêncio da noite causava uma inquietação no valente guerreiro, que podia ouvir seu coração batendo e sua respiração ecoando nos ouvidos em estado de alerta.
Uma das criaturas subestimou a velocidade da espada de Gullian e, ao saltar sobre a desejada presa, teve o peito rasgado pelo aço frio, caindo em agonia. Outras duas atacaram o guerreiro na seqüência. Gullian esquivou-se habilmente de uma delas e, conscientemente, girou a pesada espada como um parafuso, impondo força para que a lateral da grossa lâmina, onde era desprovida de corte, descesse violentamente por cima da outra criatura, que teve o crânio esmagado ao ser martelado. Velozmente, Gullian girou o corpo com os braços abertos e deixou a espada acompanhar o movimento de seu braço esticado. A outra criatura foi pega dentro do campo de giro da espada e foi rasgada ao meio.
As cinco criaturas restantes, percebendo a perigosa presa que enfrentavam, não atacaram prontamente. Formaram um círculo ao redor de Gullian. Os olhos negros do guerreiro mal podiam vê-las. Corriam e pulavam ao seu redor sem uma ordem definida, com a intenção confundir o alvo.
Gullian precisava diminuir a quantidade de criaturas saltitantes. Rapidamente, sacou a faca presa no antebraço e arremessou-a contra uma delas, acertando o olho direito de um dos demônios, que guinchou e tombou lentamente sem vida.
Restavam quatro. Elas continuaram a realizar os movimentos como se não tivessem a intenção de atacar, e eram pacientes. Infelizmente, Gullian não tinha mais facas para arremessar. Os demônios dançantes continuavam a correr em volta de dele, que acompanhava atento os movimentos frenéticos das criaturas.
Depois de alguns minutos, o valente guerreiro estava sendo vencido, começou a se sentir-se tonto. A estratégia dos demônios estava dando certo. Iriam esperar, até terem certeza do momento adequado de atacar.
Faísca relinchava, parecia querer chamar a atenção dos inimigos para si, mas as desprezíveis bestas mantinham sua dança hipnótica.
Gullian sabia que estava perdido. Não as acertaria quando sofresse o ataque. Sua visão estava embaralhada. Começou a se sentir-se desprotegido, ao perceber que estava perdendo o equilíbrio.
Subitamente, uma das criaturas pulou em direção às costas de Gullian, que seria pego desprevenido. Um zunido rasgou o ar. Ela teve seu ataque interrompido por uma flecha cravada em seu crânio.
Gullian não enxergava de onde vinha a ajuda, apenas viu o demônio da profundeza cair e rolar morto. Ao seu redor tudo estava escuro.
Outro zunido. Mais uma criatura caiu morta. Restavam duas. Uma delas teve uma flecha trespassada nas costas enquanto procurava o atirador, e a outra partiu velozmente com a intenção de se ocultar no escuro do abismo, porém, a flecha foi mais rápida.
Ainda se recuperando, Gullian viu Fargus montando um cavalo marrom aproximar-se. O seu melhor guerreiro segurava um arco-e-flecha olhando atento ao redor. Fargus verificava se o perigo realmente havia sumido.
— Obrigado, Fargus. Mais um pouco eu estaria morto — agradeceu Gullian.
— Achou que se divertiria sozinho matando essas criaturas ao me deixar junto com os outros rapazes sem a mínima ação para descontrair a noite? — brincou Fargus. — Não precisa agradecer, meu amigo. Conte sempre comigo — disse Fargus, mostrando seriedade e ficando despreocupado ao ver que seu líder não possuía ferimentos.
Fargus olhou à sua volta novamente, observando o estrago que Gullian havia causado nas criaturas que ousaram atacá-lo e apenas sorriu admirado. Abaixou-se sobre o corpo de uma delas, retirou a faca cravada no olho do demônio, limpou-a na terra, pegou Faísca pela rédea e dirigiu-se até Gullian.
Gullian olhou-o paternalmente, recebeu a faca, guardou-a e o abraçou.
— Com um amigo como você, e um cavalo como esse, não tenho o que temer — comentou Gullian, terminando o abraço e acariciando a cabeça de Faísca.
— Da próxima vez que resolver sair à noite, me chame. Caso contrário terei de cavalgar sozinho no escuro novamente — ironizou Fargus.
— Desculpe-me, não esquecerei — assentiu Gullian com um sorriso estampado no rosto, pegando a tocha e montando novamente em seu cavalo.
— Higuro o espera? — perguntou Fargus, após se ajeitar na cela de sua montaria.
— Não, mas preciso lhe dar uma informação.
— Algum problema? — Um grande problema. Parece que nossos dias de tranqüilidade estão ameaçados.
— Algo relacionado ao estranho que você encontrou hoje?
— Isso mesmo. Antes de morrer, ele disse que morava na vila de Odero. Não muito longe da nossa. Tiveram problemas sérios por lá.
— Que tipo de problema? Criaturas atacaram a vila? Orcs? Trolls?
— Pior.
— Outro mago?
Gullian apenas concordou com a cabeça e disse:
— Tenho de prevenir Higuro.
— Ele saberá o que fazer — disse Fargus calmamente. — Irei te acompanhar.
Gullian sentiu uma enorme gratidão. Sabia que tinha seu fiel amigo junto dele para todas as ocasiões. Juntos, com Gullian carregando a tocha à sua frente, partiram em direção ao castelo de Higuro.
Após atravessarem a ponte de madeira sem problemas, seguiram tranqüilamente até a morada do poderoso mago. O castelo era imponente. Suas paredes envelhecidas, erguidas com grandes pedras maciças, pareciam não ter fim. Três altas torres representavam as pontas de um triângulo no céu, as janelas mal podiam ser vistas, pareciam alcançar as nuvens.
Fargus estava apreensivo, nunca tinha entrado no castelo de Higuro antes.
Todos temiam a morada do velho mago, pois diversas lendas sobre o local faziam a imaginação das pessoas fervilhar. Alguns diziam que o castelo abrigava criaturas maléficas em suas masmorras, que estavam presas por não respeitar a paz que Higuro exigia em seus domínios. Outros afirmavam que algumas portas do castelo levavam para outros mundos, fora dos limites de pessoas comuns, utilizadas somente para os magos se comunicarem com os deuses.
Esses eram apenas alguns rumores, porém, eram obscuros e assustadores o suficiente para manter, inclusive, os mais curiosos e atrevidos afastados do local.